sexta-feira, fevereiro 06, 2009

Será que a gente é gente?

Fazia anos que eu não pisava naquele lugar. Na porta de entrada, a Eva do Brecheret dava as costas, em qualquer dimensão tecida em mármore. A costela torta, prova da fraqueza que justificou o genocídio de milhões de mulheres pelos inquisidores da baixa idade média.


 Mas eu não estava ali pra pensar, eu queria não pensar quando aceitei o convite da minha amiga pro teatro. Desci as rampas buscando a bilheteria. Ainda estava fechada. Ótimo pra ficar sozinha alguns instantes.


 Uma banda tocava no fosso; lembrei que ali eu assisti a alguns shows, até um golpe de estado há milhares de anos. Se eu me visse tão séria hoje não me reconheceria.


 Quis sentar num dos bancos, só pra ver as pessoas passarem, entregue ao cansaço.  Tentar ver sem etiquetar nem julgar. Mas precisava fazer uma ligação e a baratinha eletrônica estava sem bateria. Descobri um orelhão, com um cara plantado nele. A cada desligada eu me animava, mas ele carregava nas mãos uma infinita listinha cheia de números. Melhor tomar um café. Na fila, encontrei minha amiga com mais duas amigas e um outro amigo. Pessoas queridas.


 Em frente ao café, um jardim que eu não visitava desde o período jurássico. Batendo papo, fomos dos cantos gregorianos no mosteiro à nudez teatral dos sertões do Zé Celso. A criação de personagens pelo “método Stanislavski” e o avesso disso, que vem das entranhas. Das estratégias de marketing dos bancos com suas calculadas manipulações aspiracionais ao futebol das meninas. Sociedade verticalista e as trampas do poder punitivo. Mas eu tinha vindo aqui pra não pensar, pensei. Melhor fugir pro banheiro, vou lavar o rosto.


 A peça vai começar, hey ho let’s go. Entramos em meio a uns lânguidos e coloridos gemidos (essa pessoa tá chapada ou a peça já começou?). Era a peça rolando à queima-roupa. Percebendo o risco iminente do lance possivelmente interativo, meus instintos me arremessaram lá pro fundo da platéia lotada. Os balõezinhos se multiplicavam em cima de mim: “adorei conhecer vocês, bater papo e tal, mas tô indo...” “na verdade, eu só queria relaxar um pouco, não tava preparada...” “por que foi que eu vim mesmo, Cacilda?” Nada feito, preferi deixar a voz do Gero Camilo me capturar.


 E lá estavam no palco as três pessoas num ciclo, um discurso miserável, violento e frenético. Algumas risadas tensas saltavam no ar, por sadismo ou dor de barriga mesmo. O trio prostituta-bicha-canalha é capaz de provocar nos desavisados qualquer tipo de purismo: eles sujos – nós puros. Uma carne viva e dolorosa. A invocação da figura materna no desmundo: ou se é santa ou puta. “Tá difícil pra todo mundo, né, gente?” A criatividade manipula o malvado, chacoalha caretas de plantão. Mas a lucidez também tem vez: “será que a gente é gente?”


 No “the end” encenado, fica um gosto amargo de que aquilo tudo não é novidade, é só meio diluído e mal disfarçado no mundão. Peaceless, homeless, loveless...  Melhor insensível ser. Na próxima metamorfose, será bom escolher uma casca mais grossa.


 No metrô, após as despedidas, a cabeça-dinossauro pesava sobre o corpo. Na estação, de um anúncio do filme dos Titãs brotava uma trilha sonora, alimentava ternura no timbre do Arnaldo Antunes. Saiba... todo mundo teve infância... Por causa disso, depois que o trem passou, deu pra ver uma graúna e um menino chamado Calvin saindo do túnel escuro, pulando dos trilhos pra plataforma e conversando. Deu pra sacar um trechinho:


 - Hoje eu vi um filme sem violência, sem estupidez, sem trauma...


- Hum... e o que você achou?


- Sei lá... é estranho não ter minhas emoções manipuladas...   


 


Serviço: “Navalha na carne”. Texto: Plínio Marcos. Direção: Pedro Granato. Elenco: Gustavo Machado, Paula Cohen e Gero Camilo. Centro Cultural Vergueiro, 21h. Terça a quinta, R$ 15,00. Em cartaz até 19/02.

2 comentários:

Mari disse...

Amei, amei, amei, minha amiga querida.
Bjs
Mari

Muta disse...

sensacional ju!

e o diálogo entre o calvin e a graúna... :o)