quarta-feira, junho 11, 2008

A orquestra, o médico e a enfermeira

Decidi fazer os domingos renderem mais que cinemas ou ressacas, chega de esbórnia. Saí de casa no domingo de manhã super atrasada pro concerto no teatro municipal, mas cheguei em tempo, descabelada e esbaforida: já ouvia o ranger das cordas, os sopros e metais afinando em meio ao burburinho da comportada platéia paulicéia. Só encontrei lugar no gargarejo.


No intervalo, resolvi mudar de posição. Assim, avistaria todo o teatro. Foi aí que, em meio às cores da sinfonia, aos 'psicattos' e aos bocejos de diversos naipes, algo muito previsível tornou-se perceptível: cerca de 80 pessoas tocando, 15 mulheres apenas... Fiquei pensando...Seria a erudição naturalmente contrária à igualdade?


Pensei no porquê as meninas sempre foram mais incentivadas ao piano. Imagino que tenha a ver com a visão antiga de mulher restrita à vida privada, já que o piano parece caseiro por excelência. Conversando com uma amiga musicista, compreendi como as mulheres ainda têm pouquíssimo espaço na regência e na composição. Salve Chiquinha Gonzaga!


Mas nem só de orquestras vive a desigualdade de gênero. De parlamentos também. Até na terra da Björk! Já que o mote por aqui é a Suíça, lembro que a Islândia possui, cf. a ONU, os mais elevados índices de desenvolvimento humano (IDH), de desenvolvimento relativo ao gênero (IDG) e de eqüidade de gênero (IEG) do planeta, o direito ao voto pleno (votar E ser votada) reconhecido há quase cem anos, apenas 31% dos assentos no parlamento islandês são ocupados por mulheres.


Outro aspecto que considero visceral - além do fato de que as mulheres, na maioria dos países, ganham salários inferiores aos dos homens - é a afetação do tempo. Em todos os países pesquisados no Relatório da ONU, as mulheres dispõem de muito menos tempo livre que os homens. Me fez lembrar uma conversa com uma líder comunitária engajada nos direitos de moradia digna. O relato de como as mulheres-cidadãs-trabalhadoras-mães-companheiras-pobres-malabaristas conseguem dar conta do recado e ainda participar das reuniões... Haja peito!


Esse cenário todo tem a ver com fenômenos conhecidos por “etnicização e feminização da pobreza”, ligados ao crescente número de mulheres e meninas refugiadas, prostituídas, desempregadas, encarceradas, preferidas pelas redes de tráfico de seres humanos, excluídas de um modo geral. Estudos já apontaram como a igualdade entre homens e mulheres pode representar uma das formas de redução da pobreza.


Entre as idéias capazes de promover as mutações necessárias - falando de “empowerment” ou “empoderamento” das mulheres - está uma valiosíssima ferramenta: a linguagem, poderoso instrumento ideológico. Acontece que as meninas e mulheres ficam invisíveis atrás de uma linguagem em que o masculino prevalece, retratando as relações de poder subjacentes. Só pra ilustrar, recebi da escola da minha filha um convite para a reunião de “pais”. Lá chegando... Adivinhem? Estavam apenas as “mães”... Ao explicar as propostas pedagógicas, alguém destacou na tela o “desenvolvimento de um TIPO DE HOMEM capaz de blábláblá”. Vomitei! O que seria das garotas? Onde enfiaram o direito à diferença? Imaginei as crianças saindo de uma grande máquina, agora não mais como salsichas; como homens idênticos.


A experiência cotidiana é sempre reveladora e intrigante. Chegando outro dia num hospital, ouvi alguém perguntando “cadê os médicos e as enfermeiras?”. Naquele instante os “médicos” (no masculino) representavam a noção de poder e as “enfermeiras” (no feminino) a de acessoriedade. É exatamente disso que tratam algumas diretrizes da UNESCO para as escolas, em busca de uma linguagem inclusiva, para que meninas e meninos tenham a chance de alterar padrões mentais impostos. E, em vez de ouvir diariamente idéias como “os alunos são capazes”, “o homem pode transformar o mundo”, “a história do homem”, possam ouvir (e refletir, falar, criticar) sobre “a história da humanidade” (incluindo mulheres, afrodescendentes, indígenas que se destacaram ao longo dos tempos), “os alunos e as alunas são capazes” etc.[4]


No mundo virtual  já se vêem mutações, a exemplo do uso de "@" para desginar masculino e feminino (a expressão “caros amigos e caras amigas” sintetizada em "car@s amig@s").


Evidente que os homens não estão sendo tomados por inimigos. Seria um equívoco lamentável reproduzir a lógica de exclusão vigente. Os cangaceiros Zeferinos e os bodes Orelanas podem sentir-se co-responsáveis pela transformação (ou fugir dela...). E entendo, sinceramente, que caiba às mulheres não só “to get over it”, mas sobretudo protagonizar a revolução!









Fica o convite ao livre pensar, com gosto do que quiserem, como singelo presente para este dia ;D ...

No Brasil, que ocupa agora a 70ª posição pelo IDH, e reconhece o voto pleno desde 1935, há apenas 8% de parlamentares mulheres na Câmara e 12 % no Senado.

 [2] Relatório de Desenvolvimento Humano 2007-2008 da ONU. Ver www.pnud.org.br .



Um comentário:

Muta disse...

Pois bem minha gente, nota-se que essa foi a estréia da Graúna e ela conseguiu realmente me surpreender.

O que parecia ser uma conversa sobre música e o jeito de ser paulistano - e droga, tentamos há séculos ir ao municipal e ela consegue quando não estou por perto... deve ser culpa minha, hoho -, torna-se um grito pela igualdade de gêneros e uma oportunidade de falar sobre algo que merece muito, mas muito destaque!

Muito orgulho dessa Graúna de fortes idéias. =D